Cobrança em seguros: linha de frente ou retaguarda? Um diálogo com Alexandre Manfrin

  • Patricia Orlando
Publicado dia
28/5/2025
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de leitura
Atualizado em
28/5/2025
  • Seguros

O mercado segurador brasileiro movimentou R$ 353 bilhões em prêmios em 2023, segundo dados da CNseg, um crescimento de 10% em relação ao ano anterior. Dentre os produtos com maior potencial de expansão, o seguro fiança locatícia tem ganhado destaque, não só como alternativa ao fiador, mas como instrumento de eficiência operacional. Contudo, a inadimplência continua sendo um ponto sensível para o setor.

Enquanto o foco tradicional permanece na regulação de sinistros e gestão do risco técnico, a recuperação de crédito e os mecanismos de cobrança ainda são subestimados pela maioria das seguradoras. É justamente nesse ponto que se destaca Alexandre Manfrin, executivo com passagens por Porto, Itaú e Crefisa, especialista em estruturar operações completas de cobrança, inadimplência e ressarcimento.

Nesta entrevista exclusiva à Arbitralis, Manfrin compartilha sua visão sobre os principais gargalos do setor, o papel estratégico da cobrança e o futuro da resolução de conflitos no ambiente segurador.

Alexandre Manfrin

1. Você tem passagem por players como Porto e Crefisa, atuando diretamente com gestão de crédito em produtos securitários. O que te atraiu especificamente no universo dos seguros e o que ele tem de mais desafiador?

O que me atraiu foi o desafio de atuar em um setor que lida, ao mesmo tempo, com aspectos técnicos, jurídicos, financeiros e humanos. O seguro fiança locatícia, por exemplo, é um produto que parece simples à primeira vista, mas exige uma operação altamente estruturada e multidisciplinar. Ao contrário de um produto bancário tradicional, aqui o impacto de uma inadimplência não é apenas financeiro, mas também operacional, jurídico e de imagem. Em seguros, cada real que sai tem que ser justificado técnica e comercialmente. Isso exige não apenas controle de risco, mas uma compreensão profunda da jornada do cliente, da dinâmica do mercado imobiliário e das decisões estratégicas da companhia.

O maior desafio é encontrar o ponto de equilíbrio entre eficiência e experiência. A companhia precisa indenizar rápido para manter a confiança do mercado, mas também precisa atuar preventivamente para evitar sinistros ou mitigar seus impactos.

A operação necessita ser precisa como um mecanismo de relógio suíço: corretor, imobiliária, cliente, tecnologia, análise de crédito, cobrança e jurídico, todos precisam estar em harmonia. Cada engrenagem que gira fora do tempo compromete o conjunto inteiro. E é justamente esse grau de complexidade que me move. É um ambiente onde não existe fórmula pronta e onde cada etapa da cadeia pode ser decisiva para o resultado final.

2. Você já liderou operações com seguro fiança locatícia, garantia e capitalização. Qual desses produtos você considera o mais subestimado quando falamos em eficiência financeira? Por quê?

Entre os três produtos, o seguro fiança locatícia é, sem dúvida, o mais subestimado. Existe uma percepção de que ele é apenas um mecanismo de proteção jurídica contra inadimplência, mas quem opera de forma estratégica entende que ele pode ser também uma importante alavanca de eficiência operacional e financeira. Quando se olha para o ciclo completo do produto desde a análise de crédito até o encerramento do contrato percebe-se que há muitas oportunidades de atuar antes que o prejuízo se concretize. Quando se entende a lógica do ciclo completo, o seguro fiança deixa de ser custo e passa a ser ativo.

Muitas companhias focam na etapa do sinistro como se ela fosse inevitável. Mas há muito a ser feito antes disso. A cobrança, por exemplo, pode atuar logo no início da inadimplência, recuperando o pagamento do aluguel e evitando a abertura do sinistro.

Ou ainda negociar a desocupação do imóvel, evitando provisões maiores. Além disso, há espaço para resgatar parte do valor pago por meio do ressarcimento. Ignorar essas camadas é como dirigir um carro apenas olhando pelo retrovisor: você até sabe onde bateu, mas perdeu a chance de evitar o acidente.

3. Como a criatividade ajuda a enfrentar temas áridos como inadimplência e sinistro em seguros?

A criatividade é uma ferramenta poderosa para transformar ambientes e desbloquear o engajamento das equipes. No caso do desfile de escola de samba, o objetivo não era apenas fazer algo lúdico, mas provocar uma reflexão sobre como funcionamos como organização. Em uma escola de samba, cada ala, cada instrumento e cada componente precisa estar em sintonia. Nenhuma ala vence o carnaval sozinha, assim como nenhuma área sustenta o resultado isoladamente.

No seguro fiança, isso é ainda mais evidente. A experiência do cliente depende do alinhamento entre corretores, imobiliárias, áreas de sinistro, cobrança, jurídico, tecnologia, canais de atendimento e parceiros externos. Se um desses elos falha, o impacto reverbera em toda a cadeia. A ação do desfile gerou pertencimento e reforçou a importância da colaboração, mostrando que mesmo temas áridos como inadimplência, sinistro ou cobrança podem ser enfrentados com mais leveza, humanidade e estratégia quando há engajamento coletivo.

“Criatividade no ambiente corporativo funciona como uma avenida de mão dupla: aproxima pessoas e acelera resultados.”

4. Na gestão de sinistros em fiança e garantia, o que separa uma operação eficiente de uma que só “apaga incêndios”? Existe um modelo ideal para mitigar prejuízos logo no início do ciclo?

A diferença está na capacidade de antecipação. Operações eficientes não esperam o sinistro ser aberto para começar a agir. Elas trabalham com dados, monitoramento de comportamento de pagamento, alertas preventivos e, principalmente, integração entre áreas. A diferença entre conter danos e gerar resultado está no tempo da resposta. Não se trata de apagar incêndios, mas de impedir que o incêndio comece.

Um modelo ideal é aquele que combina tecnologia, governança, canais de atendimento multicanais e equipes treinadas para lidar com a inadimplência desde o início do ciclo.

Isso permite ações coordenadas como a retomada do pagamento do aluguel antes da decretação do sinistro ou a negociação para desocupação do imóvel com redução de impacto financeiro. É como um sistema de defesa em camadas: quanto mais cedo a interceptação, menor o dano no final.

5. Você já liderou times que atuavam com análise, cobrança, jurídico e parceiros externos. Onde está o maior gargalo hoje no fluxo de ressarcimento em seguros: no processo, na tecnologia ou na cultura da companhia?

O principal gargalo ainda está na cultura. Muitas seguradoras tratam a cobrança apenas como uma extensão do sinistro ou como uma ação judicial pós-indenização. Isso limita a visão estratégica sobre um tema que é vital para a sustentabilidade do negócio. Enquanto o mercado enxergar a cobrança apenas como desdobramento financeiro, continuará deixando dinheiro na mesa.

Na prática, a cobrança atua desde antes do sinistro buscando a retomada do pagamento ou a desocupação do imóvel, durante o sinistro orientando o melhor caminho para minimizar perdas e após a indenização por meio do ressarcimento. Ela é uma das poucas áreas que transita por todas as fases do ciclo. Se pensarmos como uma orquestra, o sinistro pode ser o solo de destaque, mas é a cobrança que sustenta a harmonia do espetáculo. Sem ela, o concerto desafina.

“Quem cobra bem é quem participou da concepção do produto e entende sua mecânica desde a largada.”

6. A judicialização é cara, lenta e muitas vezes ineficaz. O que você considera uma régua ideal para gestão de inadimplência em seguros, especialmente nos casos persistentes?

A régua ideal é aquela que respeita o custo, o tempo e a chance de êxito de cada ação. Judicializar tudo é como usar marreta para pendurar um quadro: exagerado, caro e pouco eficiente. É preciso inteligência de dados para entender o perfil do cliente inadimplente, avaliar seu histórico, sua propensão de retorno e sua capacidade de negociação. A partir disso, desenhar uma régua progressiva, começando por canais digitais, passando por negociação ativa com proposta calibrada e chegando ao jurídico apenas quando houver viabilidade real de recuperação.

Essa régua também precisa ser viva, revisitada frequentemente com base nos resultados. Não existe um modelo engessado que funcione para todos os perfis. A régua ideal protege o caixa da companhia e otimiza a experiência do cliente mesmo em situações delicadas. Ela atua com firmeza, mas também com inteligência emocional.

7. A nova Lei de Seguros (14.599/2023) trouxe mais clareza sobre deveres e direitos das partes. Do ponto de vista de cobrança e ressarcimento, o que essa mudança impacta na prática?

A nova lei foi um avanço necessário e bem-vindo. Ela reduz ambiguidades, padroniza entendimentos e traz mais segurança jurídica para as relações entre segurado e seguradora. Quando o jogo tem regras claras, a estratégia fica mais eficiente. Para quem atua com cobrança e ressarcimento, isso significa decisões mais firmes, menos margem para disputas frágeis e mais previsibilidade no fluxo de atuação.

Além disso, ela eleva o nível de exigência técnica da operação. Os profissionais que lidam com inadimplência e ressarcimento agora precisam ter domínio jurídico, conhecimento profundo do produto e agilidade na aplicação das novas regras.

É como trocar um manual genérico por um mapa detalhado: todos sabem exatamente onde estão e para onde precisam ir.

8. Você acredita que o setor de seguros está preparado para escalar o uso de métodos alternativos de resolução de conflitos, como a arbitragem, especialmente nos produtos com sinistros massificados como fiança e garantia?

Ainda não está totalmente pronto, mas está a caminho. A arbitragem e outros métodos alternativos de resolução de conflitos podem ser extremamente eficazes em sinistros massificados, principalmente quando se trata de acelerar decisões, reduzir custos e melhorar a experiência do cliente. Quando o processo tradicional trava, abrir novos caminhos é sinal de maturidade.

O desafio está em adaptar contratos, viabilizar economicamente o modelo, estruturar as cláusulas arbitrais e treinar os times. Ainda há resistência cultural, mas com o avanço tecnológico, a evolução das plataformas jurídicas e a busca por eficiência, esse movimento deve ganhar força. O setor precisa entender que eficiência jurídica também é eficiência operacional.

9. Se você pudesse implementar um projeto-piloto para transformar a forma como seguradoras lidam com inadimplência e ressarcimento, o que faria?

Criaria um núcleo especializado, multidisciplinar e com autonomia para atuar de ponta a ponta. Um time com perfis complementares: cobrança, jurídico, analistas de dados, especialistas em canais digitais, tecnologia e atendimento. A especialização gera profundidade, e a profundidade traz retorno.

Esse núcleo teria como foco mitigar perdas antes mesmo da abertura do sinistro, negociar soluções viáveis para os clientes inadimplentes, estruturar acordos sustentáveis e, se necessário, buscar o ressarcimento de forma coordenada. Judicialização só entraria quando todas as outras tentativas fossem esgotadas e houvesse viabilidade financeira. A estrutura funcionaria como uma torre de controle: silenciosa, mas essencial para garantir que tudo funcione com segurança e eficiência.

“Mais do que um núcleo, eu criaria uma célula de valor, com metas próprias, independência e vocação para escalar.”

10. O que o mercado de seguros ainda não entendeu sobre inadimplência e ressarcimento? Que “verdade incômoda” você gostaria de ver sendo discutida nos grandes fóruns do setor?

A principal verdade incômoda é que ainda se enxerga a cobrança como uma ação de retaguarda, quase como uma consequência do sinistro. E ela não é. Cobrança não é o que vem depois. É o que pode evitar que o pior aconteça. Cobrança bem feita evita o sinistro, reduz o tempo de exposição ao risco, negocia a saída do inquilino antes que a dívida cresça e, quando necessário, atua no ressarcimento.

Ela precisa estar no centro da estratégia da companhia, com investimento, tecnologia, inteligência de dados e visão de futuro. Cobrança é linha de frente, é ferramenta de sustentabilidade financeira e, principalmente, é um mecanismo de proteção do resultado técnico da seguradora. Enquanto essa visão não for incorporada de forma plena, o setor continuará convivendo com perdas evitáveis e oportunidades desperdiçadas.

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